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Falar claro
REVISTA SÁBADO, N.º 417, 26 ABRIL 2012
NUNO ROGEIRO | POLITÓLOGO
«
Filhos da
madrugada
Dois anos depois do 25 de Abril de 1974, Portugal
preparava-se para vender 25% das suas reservas de ouro, estimadas então em
quase 900 toneladas.
Em 1977, muito antes do papão do “neoliberalismo”, com o
Conselho da Revolução a vigiar a marcha dos governos, recorremos ao FMI para um
empréstimo que nos salvaria de uma situação dramática. A alternativa era,
literalmente a fome para milhões de portugueses. O desemprego subiu para 11%, a
moeda foi desvalorizada, o crédito às empresas contraiu-se brutalmente. O
orgulhoso “Estado de Abril” ficava sob vigilância de Bretton Woods, mas
continuava a festejar-se – oficialmente – a revolução.
Em 1983 voltávamos à limitação da soberania económica,
com novo plano de resgate do Fundo, tido como urgente para resolver problemas
de tesouraria, ante a geral desconfiança internacional no rumo português. O
Conselho da Revolução tinha sido extinto apenas há uns meses, na revisão
constitucional de Setembro de 1982. Todo o processo de degradação que levou ao
segundo empréstimo deu-se debaixo do olho vigilante e sem sono.
Este Conselho, recorde-se, reunia muitas das figuras
militares do novo regime. Era suposto representar “o espírito de Abril”, mas
tinha poderes reais e decisivos: Tribunal Constitucional, Conselho de Estado e
órgão de tutela do Parlamento. Nessas qualidades, observou, presidiu e
colaborou no descalabro das contas públicas, endividando os portugueses,
levando os desempregados às ruas com bandeiras negras, supervisionando a
falência das empresas, colocando-nos nas mãos da banca mundial e dos agiotas de
todas as cores.
Quando se conta a história do actual acordo de
assistência financeira, deve lembrar-se este passado. É preciso existir
autoridade moral para contestar e combater a “ditadura da troika”. Os antigos
membros do Conselho da Revolução não a possuem. É penoso dizê-lo, mas é preciso
lembrá-lo.
«Em que estado me deixou o País”, terá o general Spínola
suspirado a Marcello Caetano, quando entrou no quartel do Carmo. Com a
distância dos eventos, podemos comentar sobre a situação em que a
pseudo-revolução nos legou Portugal, com um cadafalso à espera das novas
gerações.
Só a aquisição maciça de fundos europeus, sobretudo
entre 1987 e 2002, permitiu que a economia crescesse, que se gerasse riqueza, e
que se conseguisse pagar – integralmente – os empréstimos gerados pela
“revolução”. Sem isso, a bancarrota teria vindo mais cedo, e de forma
apocalíptica.
Deve lembrar-se que, com a corda na garganta, foram
governos de Mário Soares que aceitaram e negociaram as imposições de 1977 e
1983. Fica isto dito sem ira nem reprovação. Fizeram o que tinha de ser feito.
Mas assinaram, na altura, uma espécie de declaração de falhanço de toda a parte
económico-social das “promessas de Abril”.
Faz assim sentido que nem Soares nem os antigos
apoiantes e membros do Conselho da Revolução celebrem, oficialmente, o 25 de
Abril.
Os filhos da madrugada não podem, em consciência,
celebrar a noite que criaram.»