quarta-feira, 20 de junho de 2012

Falar claro

REVISTA SÁBADO, N.º 417, 26 ABRIL 2012
NUNO ROGEIRO | POLITÓLOGO

«
Filhos da madrugada

Dois anos depois do 25 de Abril de 1974, Portugal preparava-se para vender 25% das suas reservas de ouro, estimadas então em quase 900 toneladas.
Em 1977, muito antes do papão do “neoliberalismo”, com o Conselho da Revolução a vigiar a marcha dos governos, recorremos ao FMI para um empréstimo que nos salvaria de uma situação dramática. A alternativa era, literalmente a fome para milhões de portugueses. O desemprego subiu para 11%, a moeda foi desvalorizada, o crédito às empresas contraiu-se brutalmente. O orgulhoso “Estado de Abril” ficava sob vigilância de Bretton Woods, mas continuava a festejar-se – oficialmente – a revolução.
Em 1983 voltávamos à limitação da soberania económica, com novo plano de resgate do Fundo, tido como urgente para resolver problemas de tesouraria, ante a geral desconfiança internacional no rumo português. O Conselho da Revolução tinha sido extinto apenas há uns meses, na revisão constitucional de Setembro de 1982. Todo o processo de degradação que levou ao segundo empréstimo deu-se debaixo do olho vigilante e sem sono.
Este Conselho, recorde-se, reunia muitas das figuras militares do novo regime. Era suposto representar “o espírito de Abril”, mas tinha poderes reais e decisivos: Tribunal Constitucional, Conselho de Estado e órgão de tutela do Parlamento. Nessas qualidades, observou, presidiu e colaborou no descalabro das contas públicas, endividando os portugueses, levando os desempregados às ruas com bandeiras negras, supervisionando a falência das empresas, colocando-nos nas mãos da banca mundial e dos agiotas de todas as cores.
Quando se conta a história do actual acordo de assistência financeira, deve lembrar-se este passado. É preciso existir autoridade moral para contestar e combater a “ditadura da troika”. Os antigos membros do Conselho da Revolução não a possuem. É penoso dizê-lo, mas é preciso lembrá-lo.
«Em que estado me deixou o País”, terá o general Spínola suspirado a Marcello Caetano, quando entrou no quartel do Carmo. Com a distância dos eventos, podemos comentar sobre a situação em que a pseudo-revolução nos legou Portugal, com um cadafalso à espera das novas gerações.
Só a aquisição maciça de fundos europeus, sobretudo entre 1987 e 2002, permitiu que a economia crescesse, que se gerasse riqueza, e que se conseguisse pagar – integralmente – os empréstimos gerados pela “revolução”. Sem isso, a bancarrota teria vindo mais cedo, e de forma apocalíptica.
Deve lembrar-se que, com a corda na garganta, foram governos de Mário Soares que aceitaram e negociaram as imposições de 1977 e 1983. Fica isto dito sem ira nem reprovação. Fizeram o que tinha de ser feito. Mas assinaram, na altura, uma espécie de declaração de falhanço de toda a parte económico-social das “promessas de Abril”.
Faz assim sentido que nem Soares nem os antigos apoiantes e membros do Conselho da Revolução celebrem, oficialmente, o 25 de Abril.
Os filhos da madrugada não podem, em consciência, celebrar a noite que criaram.»