domingo, 4 de maio de 2008

Passado recente


«Mas a crise do preço da alimentação é também um momento de ajuste de contas com o passado recente, em países como Portugal. Antes de entrarmos na UE produzíamos mais de metade do que comíamos, tínhamos ainda um mundo rural e agrícola e um país relativamente equilibrado entre o interior e o litoral, a província e as grandes cidades. Mais de duas décadas depois, o que vemos? Produzimos menos de um quarto daquilo que comemos; à força de subsídios, desmantelámos a frota pesqueira e deitámos fora toda uma cultura e saber que demorara gerações infinitas a apurar, passando a importar todo o peixe que vem à mesa; gastámos fortunas a pagar aos agricultores para eles abandonarem os campos ou ficarem sentados a ver em que paravam as modas, sem investir, sem inovar, sem arriscar - até lhes demos uma barragem, a maior da Europa, para eles se distraírem a fazer regadio, já que diziam que as culturas de sequeiro não davam, mas, assim que se viram com a barragem feita, venderam as terras aos espanhóis, agarraram nas mais-valias que os contribuintes lhes tinham facultado e agora só querem regressar ao local do crime para fazer urbanizações turísticas à beira de Alqueva; de caminho, desmantelámos a fileira florestal tradicional, substituindo-a por um oceano de pinheiros e eucaliptos, contribuindo ainda mais para a desertificação e os incêndios de Verão, porque um ex-ministro, hoje muito bem na vida, declarou solenemente que “os eucaliptos são o nosso petróleo verde”; enfim, como resultado último de toda esta clarividência, gastámos os rios de dinheiros europeus que nos poderiam e deveriam ter garantido a solvabilidade e independência económica para sempre, a construir auto-estradas e duas megacidades onde as pontes e os terminais de transportes de toda a ordem nunca são suficientes para acolher o Portugal que fugiu do interior morto.

Assim tornámos o país insustentável (...)»

Miguel Sousa Tavares, no jornal Expresso de 3 de Maio de 2008, excerto do artigo intitulado ENCHE-SE-ME O CORAÇÃO DE TRISTEZA.


2 Comentários:

Às 6 de maio de 2008 às 02:51 , Anonymous Anónimo disse...

Enche o coração de qualquer um, de tristeza, ler e saber tais coisas! Seria a globalização a responsável pelos discursos e ações que falam de sustentabilidade, mas encontram caminhos insustentáveis?

 
Às 7 de maio de 2008 às 19:27 , Blogger Nuno Carvalho disse...

O principal problema reside, na minha opinião, na inaptidão da grande generalidade dos governantes portugueses actuais.
Para gerir correctamente um país não basta vencer eleições; é necessário ter capacidade e integridade para tais funções.

 

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