sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Portugal actual: um país cada vez mais aterrador. Internato médico. Corte nas vagas deixa de fora recorde de candidatos

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Escolher uma especialidade médica não é só questão de vocação. Depois de terminarem o curso, os médicos fazem um ano comum de internato e uma prova nacional de acesso à especialidade. Consoante a nota, podem optar pela formação específica. Quem não entrar à primeira na especialidade que quer, ou quiser fazer uma troca, tem a hipótese de se candidatar a um concurso extraordinário, com vagas próprias. O processo era simples, até este ano: a um mês da prova, em Novembro, os candidatos (323) perceberam que em vez das habituais 150 vagas haverá 93. Num movimento no Facebook, criaram uma petição e começaram a enviar cartas aos directores de internato do SNS a perguntar se haveria mais vagas: três, para já, disseram que sim.

A explicação da Administração Central do Sistema de Saúde é que foi preciso reduzir as vagas no concurso extraordinário para garantir a colocação efectiva de todos os candidatos potenciais do concurso normal, para quem concorre pela primeira vez – um número recorde de 1379 de candidatos (ver infografia) que iniciaram o internato este mês. A ACSS acrescenta que os candidatos ao concurso extraordinário são “maioritariamente internos já colocados em vagas de especialidades altamente carenciadas”, disse fonte oficial ao i.

Para o bastonário da Ordem dos Médicos, embora a liberdade de escolha da especialidade tenha de estar sujeita às necessidades do Estado, o processo torna-se incompreensível quando resulta da falta de planeamento, deixando o concurso extraordinário de ser a “segunda oportunidade” na base da sua criação. “Está criada uma situação extremamente injusta, com casos de médicos que pediram licença sem vencimento ou rescindiram para concorrer de novo. Foi o Ministério da Saúde que criou o concurso extraordinário, por isso não pode agora minimizar as perspectivas dos jovens”, diz José Manuel Silva. “As pessoas condicionaram a sua vida e à última hora, sem pré-aviso, as regras do jogo foram alteradas”, acrescenta, apelando à sensibilidade do ministério.

Uma solução, diz José Manuel Silva, seria apurar se de facto existem vagas por abrir e disponibilizá-las aos candidatos do concurso IM 2012-B, que em Fevereiro terão de optar pela especialidade para iniciar o internato em Abril. Pelo menos o Centro Hospitalar do Médio Tejo e o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra responderam aos candidatos dando conta da capacidade para acolher mais internos. Também o mapa de vagas da Região Centro mostra que haveria lugar para mais cinco internos em Medicina Geral e Familiar do que as abertas. O i tentou perceber junto da ACSS se haverá vagas suplementares, sem resposta.

Para o bastonário, mais que um paliativo para este concurso, é preciso rever com urgência os numerus clausus dos 11 cursos de Medicina no país e acabar com alguns – por exemplo, os que só recebem alunos já com outra licenciatura (em Aveiro e no Algarve). “O Estado já pagou um curso, não tem de pagar outro, sobretudo se depois não tem capacidade para garantir formação específica e corre o risco de acabar por exportar esse investimento”, disse, alertando para o número crescente de licenciados que optam por fazer o internato fora.

Com a ronda de cartas por dirigentes da saúde e directores de internato médico, os candidatos do concurso extraordinário esperam ainda reduzir a discrepância: no concurso normal foram abertas vagas para 100% dos candidatos, no concurso B estão apenas cobertos 28%. Lamentam sobretudo o tempo perdido e a falta de transparência por parte da ACSS, que nunca alertou que o mapa de vagas seria reduzido, embora fosse possível antever o aumento de candidatos.

J. P., de 27 anos e interno de pedopsiquiatria, repetiu o exame para tentar mudar para uma área de cirurgia: “Com a minha nota, nos últimos anos teria quase dificuldade em saber o que escolher. Este ano arrisco-me a ficar à porta.” M. S., também de 27 anos, invoca razões familiares. É interno de Medicina Geral e Familiar e queria continuar nessa especialidade, mas mais perto de casa. “Em 2011, porque sou pai de uma criança pequena, pedi transferência do local de formação para ficar perto da minha família.” Como o pedido foi negado, repetiu o exame. “É uma especialidade carenciada, cerca de 1,5 milhões de utentes estão sem médico de família. Foi com surpresa que vi a redução do número de vagas de todas as especialidades, incluindo a minha.” C. S., interna de Patologia Clínica, fez o exame pela primeira vez em 2009 e não conseguiu entrar na especialidade que queria. Agora repetiu, para descobrir que a especialidade que quer teve, no ano passado, sete vagas e este ano só tem uma. “Pedi quatro meses de licença para me preparar para o exame. Quatro meses sem receber, quatro meses sem ir a casa, só a estudar dia e noite. Quando saiu o mapa de vagas deparei-me com um pensamento desesperante: ‘Se calhar fiz isto tudo por nada.’” Contactou a ACSS e saiu com três hipóteses: continuar em Patologia Clínica, optar por outra especialidade ou desistir da função pública caso não goste da vaga que lhe calhar. “Meio em desespero, perguntei se tinha de sair do país para entrar na especialidade de que gosto... Ficou subentendido que sim, talvez fosse melhor ideia.”
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Fonte: jornal i-online, Por Marta F. Reis, publicado em 27 Jan 2012 - 11:16