terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Mundo actual (V) - Quando a "Real Economy" é afectada

Nesta fase já ninguém admite que não estamos em crise. De facto, a crise que começou no sistema financeiro e que se alastrou devido às falhas e oportunismos deste, chegou à Real Economy, às grandes empresas que pensaríamos que mantivessem uma solidez financeira reconhecida. Os melhores exemplos, a nível mundial, encontram-se na poderosa indústria automóvel americana.

O caso da General Motors merece destaque. Uma empresa enorme, que há 6 meses que se pensaria que era imbatível face a qualquer crise, está agora no limiar da sobrevivência, a precisar de cerca de 20 mil milhões de dólares para se aguentar por mais 2 meses. Os motivos nunca são claros mas eu aponto alguns que me parecem lógicos. 1) Actualmente, a extrema concorrência na indústria automóvel implica uma estrutura de fornecimento flexível, com prazos de entrega mínimos e manutenção constante de produção em fábrica (o que pressiona os fornecedores de peças a entregar ao minuto), uma rotação de stocks elevada e uma gestão muito rigorosa de tesouraria para fazer face às necessidades de fundo de maneio. Todos estes factores têm de ter por base uma estrutura operacional sólida e sobretudo uma estabilidade nas vendas. Uma queda de vendas à volta dos 30%, como se tem assistido nos EUA, implica uma reestruturação considerável da produção a curto-prazo, mas difícil face à acumulação de stocks, à rigidez de encargos com pessoal, a acordos de longo-prazo com fornecedores e distribuidores, e muitos outros factores. Uma redução de vendas considerável tem necessariamente impacto na tesouraria destas empresas, sempre a operar no limite da sua capacidade e com alavancagens elevadíssimas. 2) A forte concorrência da Toyota (no segmento dos automóveis de média dimensão) e da Lexus e BMW (nos automóveis de luxo) nos EUA tem sido responsável pelo declínio de vendas nos últimos anos da GM. 3) A insistência na construção de automóveis ultrapassados tecnologicamente e muito focados no bigger is better (maiores cilindradas, mais cavalos, maior dimensão), trouxe muitos problemas à GM face à concorrência. Por um lado, a preocupação na eficiência do motor a nível de consumos e na redução das emissões de dióxido de carbono, e por outro na construção de automóveis com tecnologia electrónica de qualidade (Infiniti por exemplo), permitiu aos automóveis japoneses e alemães adquirir uma vantagem comparativa sobre os americanos. 4) Os enormes encargos em termos de salários, seguros de saúde e complementos de reforma que a GM suporta nos EUA (no Estado do Michigan, sobretudo) para com os seus trabalhadores, não permite à empresa flexibilizar os custos de produção ao ponto que as suas concorrentes japonesas o fazem fabricando em países onde a mão de obra mais é mais barata. Assim, em períodos de crise, a GM não é capaz de se reestruturar com a rapidez e eficiência necessária, até porque é altamente condicionada pelo poderio dos sindicatos da indústria automóvel americana.

Em Portugal, fico sobretudo espantado em como duas empresas aparentemente saudáveis e competitivas, a Qimonda (de capital alemão) e a Aerosoles (de capital português), estão a ser altamente afectadas pela crise financeira ao ponto de a Qimonda ameaçar sair do país e a Aerosoles não reunir fundos para pagar os subsídios de natal aos empregados. Este é um sinal muito sério para o tecido empresarial do país.

Com estes exemplos, destaco o que considero essencial para um crescimento sustentado. A elevada dívida financeira das empresas adquirida em termos de prosperidade, não permite às mesmas reagir com destreza em tempos de crise. Limita o raio de acção e prejudica a obtenção de mais dívida (pelo menos a mesmo preço). Parece-me que a velha máxima de empresa responsável é aquela que, dependendo do sector em que se insere e da sua maturidade, tem um passivo menor que 50% do seu activo. Muitas empresas que cresceram organicamente nos anos 70 e 80, com modelos de gestão muito responsáveis (como por exemplo a Toyota), podem servir de referência. Por outro lado, a necessidade de fixar objectivos e mecanismos de compensação idênticos entre a administração da empresa e os accionistas é imperial para a estabilidade da organização e para um crescimento sustentado de longo-prazo. Veja-se os casos da AIG e da Lehman Brothers. Prevejo nos próximos tempos um aumento progressivo do controlo accionista sobre a gestão das empresas.

Estes são factores essenciais para a construção de um modelo de corporate governance equilibrado. Um modelo que proteja o cidadão comum de, através do Estado, intervir em activos tóxicos para salvaguardar o bom funcionamento de sectores indispensáveis à economia.